domingo, 8 de junho de 2014

GRATO ou OBRIGADO?

Ou, melhor ainda: grat@! Maravilhosa internet que nos permite expressar o impronunciável.

Farto, é o que é, um bocado farto dessa mania das "novas consciências iluminadas", de que mudando de linguagem mudamos a realidade. Na minha terra, nunca ouvi agradecer com o termo "grato" até aqui há uns anos. Sempre ouvi o "obrigado" ou o "obrigada".

Mas os iluminados desta nova era entendem que o termo encerra uma noção de subserviência, logo, mude-se a palavra - muda-se a consciência! Errado, o que se perde é a riqueza semântica da língua, que, por esquecida, não devia deixar de ser buscada em primeiro lugar, por quem se propõe aprimorar a sua expressão verbal.

"Obrigado" vem do latim "ob-ligare", “ligar por todos os lados", implicando que a gratidão é acompanhada de um laço indefectível com aquele a quem se agradece. É o mais elementar reconhecimento da nossa interdependência, tão arcaico que as culturas "menos sofisticadas" do que a nossa não se contentam com uma fórmula simples, mas elaboram: "fico-te ligado para sempre", "a minha vida pertence-te", etc... Não se trata de subserviência - trata-se de entender, como os antigos entendiam muito bem, que existimos em relação com o outro e só em relação com o outro.

Agora, pensemos de novo: o que é, para nós, a gratidão? Um vago sentimento de bem-estar, de "beatitude" etérea?  Então, digamos "grato" e vamos para casa contentes, sem dívidas, ébrios de "não sei bem o quê", ao ponto da inconsciência.

Ou uma vivência muito real da nossa relatividade ontológica, da nossa auto-insuficiência e da imensa graça de termos no outro alguma confirmação do nosso ser - digamos "obrigado" e celebremos, de forma consciente, essa interdependência de todos, para com todos.

Não tenhamos pressa em modificar uma língua de que só conhecemos a superfície, nem sejamos convencidos de que descobrimos aquilo que todos os outros antes de nós foram incapazes de ver.

domingo, 27 de abril de 2014

25 de Abril



Foi bom constatar que, em 2014, o 25 de Abril continua a representar alguma coisa para tanta gente. Entristece-me que haja, mesmo assim, quem expresse alguma forma de rejeição, ou distanciamento; seja por ressentimento, seja por vaidade intelectual, seja por alguma vergonha de si mesmo.

Eu em 74 estava ainda uns 3 anos no porvir, se é que faz sentido pôr as coisas nesses termos... Sou "produto" da sociedade que nesse dia 25 de Abril se revoltou e abraçou a mudança, com todas as suas qualidades e defeitos. Incomoda-me que essa revolução, pouco mais velha do que eu, se sinta já a envelhecer. Incomoda-me que a imprensa fale nos cabelos grisalhos no Largo do Carmo.

Em 74 rompeu-se com o passado da ditadura - hoje, não vejo necessidade nenhuma de romper com o 25 de Abril, manifestação de princípios que não têm lugar nem época, nem tão-pouco de o relativizar. De romper precisamos, sim, mas com esta cultura que defende, em total desnorte, que a luta pelo interesse pessoal conduz ao maior bem comum. A realidade tem demonstrado até à exaustão, em todo o mundo e não só em Portugal, em todas as economias, estejam ou não em crise, que o conflito de interesses não se resolve em justiça - resolve-se, regra geral, em acumulação de poder. Essa cultura de conflito não foi derrotada pelo 25 de Abril - talvez não fosse esse o programa - continuou e, também por isso, o 25 de Abril não foi - ainda está a ser.

Como escreve Paulo Borges (http://www.pan.com.pt/comunicados/562-queremos-o-25-de-abril-que-nunca-houve.html), ainda queremos o 25 de Abril que nunca houve - mas que foi esperado, desejado em 74, para lá de todas as demarcações ideológicas, em uníssono induzido, talvez, pela extrema injustiça da ditadura. Que esse 25 de Abril que ainda está para vir nunca sirva de justificação para diminuir o 25 de Abril de 1974! Fico doente por ouvir alguns dos meus estimados concidadãos referir-se à "abrilona"... Viva mas é o 25 de Abril... Sempre!

Podemos - os portugueses - não ter, de momento, muito orgulho naquilo que conseguimos como sociedade livre (eu, não tenho muito) mas o abraçar a mudança, a revolta contra a injustiça, a crítica permanente mas lúcida, a meta do direito universal, requer que saibamos voltar à fonte, buscar o ânimo que nos faz andar para a frente. Canta o grisalho José Mário Branco: "E sempre que Abril aqui passar / Dou-lhe este farnel para o ajudar".

Como símbolo da capacidade de mudança, de devir, de não acomodamento, o 25 de Abril é o melhor que temos. Como símbolo, não precisa para nada de ser (b)analizado. Como símbolo, vale mais o 25 de Abril do que a bandeira nacional, o hino nacional, a própria nacionalidade, qualquer nacionalidade. O 25 de Abril foi um gesto de humanidade, de cidadania universal, não pertence a Portugal, não foi a primeira revolta nem a última inspirada pelas mesmas aspirações - a libertação do oprimido. Um princípio universal que Portugal conseguiu manifestar nesse dia de Abril de 1974. Disso deviamos sentir o quanto-baste de orgulho em vez de, como se não fosse nada conosco, "agradecer à geração que o fez", depois criticá-la por não ter sabido fazer melhor nas décadas que se seguiram e postular que os problemas, hoje, são outros.

O 25 de Abril é nosso, de todos os que nele reconhecemos algo que deu forma ao contexto, em vez de o vermos como um produto qualquer desse mesmo contexto, circunstancial, historicamente situado, fatalmente ultrapassado.

O essencial do 25 de Abril, aquilo que faz bater todo o coração sensível, não é a luta da classe operária, nem da classe camponesa, não é de todo a luta de classes, esse é um detalhe contextual, uma manifestação apenas, exagerada por quem lhe convém até se tornar numa mentira. O 25 de Abril é a luta de todo e cada indivíduo consciente contra o exercício injusto de poder sobre si, sobre os seus vizinhos, sobre toda a vida. Logo, também é o combate que hoje se impõe contra a corrupção, contra a exploração do planeta, contra a ganância, contra a apropriação da água, do ADN, do trabalho - em suma, contra a apropriação e instrumentalização da vida.

Não pode haver política sem princípios. Todo o combate político, seja em que instância for, se orientado por um princípio de comunidade universal, é 25 de Abril.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Usar a praxe

A maioria das questões é menos linear do que o nosso primeiro juízo sobre as mesmas. Sobre a praxe há muito mais a reflectir do que a sua influência na formação da capacidade de os futuros adultos saberem dizer "não" - tal como a maioria das questões, na vida, deveriam merecer mais reflexão do que uma simples ponderação entre aceitação ou rejeição. Este modo de pensar "dualista", mesmo quando não corresponde à própria demissão da razão, serve a preguiça ou o vício de manipular as ideias, em vez de as seguir. De desligar o pensamento quando apetece ou quando achamos que já chega, postulando, logo à partida, que o que importa é decidir de que lado estamos.

A universidade não é a primeira etapa da vida de um adulto: é, talvez, a derradeira da sua vida de "criança", independentemente do facto de o estatuto de maioridade legal ser conferido, em Portugal, aos 18 anos. Aceita-se, portanto, que os estudantes gostem sobretudo de brincadeira. Objectivamente, a praxe é uma brincadeira de miúdos, contendo todos os elementos presentes no recreio das escolas e liceus: espalhafato, música, energia, irreverência, regras (como todos os jogos) e, de uma forma muito evidente, a mimetização, de uma forma fantasiosa, de alguns comportamentos "dos adultos".

Há o reconhecimento, por parte dos estudantes, da sua própria importância no mundo. Marcham pelas ruas "trajados", como quem diz "eu agora também conto"! Interrompem-se aulas - a comissão da praxe chega ao anfiteatro e o professor cala-se: fenomenal! O novo estatuto de estudante permite-lhe medir "autoridade" com o professor, ou, de outra forma, questionar essa autoridade, impingida como inquestionável durante anos pelo sistema de ensino actual. Ironia: vale a pena passar pelo ridículo de uma marcha de caloiros, só para saborear este novo estatuto... Tudo, ainda, descoberta, experiência, teste aos limites do comportamento.

Como imitação que é a praxe, a forma que assume decorre da sociedade adulta que pretende mimetizar. Se a praxe apresenta ao novo estudante uma realidade social hierarquizada, estratificada (seja por anos de matrícula), organizada em associações de âmbito institucional, regional e nacional, é porque a sociedade que a inspira tem essas características. Acho, portanto, um lirismo pretender, por um lado, acabar com a praxe e, por outro, querer modificá-la, expurgá-la dos seus excessos e transformá-la numa "tradição" benigna de boas-vindas. A praxe continuará a existir, nos mesmos moldes, seja qual for o seu nível de organização legal, como espelho da sociedade em que se insere.

Incomoda-nos a deferência imposta aos caloiros, perante os mais velhos? Indaguemos em que é que a nossa sociedade apresenta as mesmas estruturas de poder discricionário. Procuremo-lho nas hierarquias institucionais, nos estatutos de VIP, nas peneiras e caganças a todos os níveis, económico, social, intelectual. Queremos combatê-la? Preocupemo-nos em ser cidadãos adultos humildes, objectivos, verdadeiros. Em nos sentirmos responsáveis pelo outro sem, em momento algum, pretendermos impor a nossa ideia do que é melhor para ele.

Incomoda-nos a condição de se sujeitar à regra ou ficar excluído? Questionemos a nossa vida social, a forma como nos agrupamos, os clãs, as classes, os clubes, os partidos, as igrejas, os bairros, as tribos urbanas. Como, constantemente, nos fechamos em grupos homogéneos e excluímos os profanos - ou seja, os que não respeitam a mesma regra. Queremos combatê-la? Adoptemos uma postura integradora e fraterna, aceitemos os outros sem condições, com as suas particularidades, diferenças de opinião.

Incomoda-nos a violência, a humilhação, o ridículo que, por vezes, se manifestam em certas actividades da praxe? Perguntemo-nos onde radica essa violência, se não é, também ela, na incapacidade de aceitar o outro enquanto ser livre, de o deixar ser livre e existir enquanto outra vontade independente da nossa. Perguntemo-nos se a violênica não medra numa cultura que exalta a competição e a ascenção social como forma de afirmação existencial. Queremos combatê-la? Pensemos, primeiro, em alterar radicalmente as nossas aspirações existenciais, do cru e cruel exercício de poder bruto sobre a natureza e sobre a sociedade para um cultivo da curiosidade pelo mundo, do desejo de encontro com o outro e com o universo. Depois, em formas de existência social e de convivência não violenta.

Quanto à praxe, está aí para ficar. Se a sociedade for outra, pode ser que a praxe se torne uma forma de acolhimento, gratuito, universal, aos novos estudantes. Ou vice-versa? Quem sabe se, nesses derradeiros anos de juventude despreocupada, a experiência de uma fraternidade verdadeira - universal, não sectária - sem imposições nem condições, não ajudaria a formar adultos menos violentos, menos egoístas, menos convencidos da sua própria importância...

E se a praxe tomasse a forma de acções de voluntariado, se incluísse o serviço útil à comunidade em lugar da vassalagem aos veteranóides, podia realmente pesar no amadurecimento do estudante. Sobretudo, se implicasse uma observação prévia das necessidades e uma escolha da tarefa, pela sua importância ou urgência, por parte do "caloiro". Nunca, uma imposição da hierarquia.

Não gosto da praxe. Penso que o bom acolhimento a qualquer novo estudante deve ser universal, fraterno, incondicional. Não tem que ser merecido. Em todo o caso, penso que não é diabolizando a praxe, mas reflectindo no seu papel e no seu contexto que se pode compreende-la e, eventualmente, utiliza-la num sentido mais construtivo do que aquele que, actualmente, tem.

sábado, 25 de janeiro de 2014

os Iluminados

Mas que bicho é que mordeu a minha rede social, hoje? Será que desceu o Espírito Santo e desatou tudo a falar com Deus? É só mensagens de iluminados! Desde os que exaltam o seu discernimento pessoal aos que professam o Ideal da Autoridade (assim mesmo, com letra maiúscula), que deve velar pelas massas néscias que necessitam de ser protegidas de si mesmas... Passando pelos que acusam "os cientistas" de serem "uns nabos", vítimas da "cegueira do conhecimento"... Que diabo?!

Apetece-me citar: "ali haverá choro e ranger de dentes" (Mt.22,13... e vale a pena ler o resto do capítulo).

S.João da Cruz refere-se aos que se sentem (e passo a citar) "cheios de fervor e entusiasmo pelo que respeita às coisas espirituais e aos exercícios de piedade. E, se é verdade que as coisas santas levam por si mesmas À humildade, esta feliz disposição, em consequência da sua imperfeição, engendra muitas vezes um certo orgulho secreto que leva os iniciantes a sentirem alguma satisfação pelas suas obras e por si próprios. Daí advém alguma vaidade, às vezes muito grande, de falar das coisas espirituais na presença dos outros, e até de querer ensinar-lhes em vez de aprender com eles".

Mea culpa. Mas não resito ao humor do santo: "alguma vaidade, às vezes muito grande"...

Ou ainda: "algumas vezes as pessoas dadas à espiritualidade, ao falarem de sujeitos de devoção ou ao cumprirem actos de piedade, deixam-se caír numa certa jactância e enfatização; pensam nas pessoas presentes e agem com alguma complacência fútil". Isto escrevia S. João da Cruz no sec. XVI ("A Noite Obscura").

Assumo totalmente a minha própria medida de arrogância ao escolher, mais uma vez, não ficar calado. Mas que pode um pobre mortal fazer quando lhe atiram com coisas como isto: "não vá a "Doutrina Secreta" cair nas mãos da "gentalha" perfeitamente incapaz de compreender os graus mais subtis da Vida (ou da Noite)".

Para evitar referir-me ao barroco do recurso às maúsculas no meio da frase que, na língua portuguesa, não é regra excepto nos nomes próprios e até fica mal... Parece uma tentativa de representar por escrito uma ênfase retórica... Como um orador a levantar a mão ao pronunciar "a Jactância!" ou "a Nesciência!"

Sobre os que contemplam os "graus mais subtis" do entendimento, Camões escrevia ("Os Lusíadas", canto X, 82):

"Aqui, só verdadeiros, gloriosos
divos estão, porque eu, Saturno e Jano,
Júpiter, Juno, fomos fabulosos,
fingidos de mortal e cego engano.
Só para fazer versos deleitosos
servimos"...


Fico por aqui...

sábado, 18 de janeiro de 2014

A opinião pública e as questões fracturantes

Quando abro a edição impressa de um jornal, fico espantado com o peso que o jornalismo de opinião tem, hoje, sobre outros géneros. Na internet ainda é mais gritante, sobretudo na era das redes sociais e da participação do público com comentários: a opinião excita mais o leitor do que o simples relato de factos; factos não se discutem (embora se discuta a propósito destes), enquanto opiniões imediatamente suscitam que se manifeste opinião contrária, constituindo assunto subjectivo e, portanto, de fácil contraditório, mesmo que bem justificadas e/ou sustentadas, nomeadamente, por factos.

Jornalismo de investigação vai rareando e ficando confinado a publicações especializadas. Entrevistas, ainda vai havendo, mas quantas vezes a entrevista não se resume a um artigo de opinião com apoio de interlocutor; ou, por vezes, à tentativa, pelo jornalista, de forçar o entrevistado a seguir a sua narrativa, a pronunciar-se sobre temas pré-definidos e que podem não ser os mais relevantes para o entrevistado (mas serão, certamente, tidos como relevantes pelo consumidor de jornalismo).

Uma opinião pública é muito mais útil do que um público.

Explico: um público habituado, mesmo pressionado a ter opinião sobre qualquer assunto, independentemente do grau de informação que tenha sobre esse mesmo assunto, é quase matemático que caia num "espectro de opinião" bipolarizado. A lógica simples da opinião rápida expressa-se em "concordância" e "discordância" e as opiniões influenciam-se umas às outras; do caos inicial destaca-se um sentido de opinião dominante e o seu contrário, pois as opiniões rápidas, sem justificação própria, procuram justificar-se quer na força do número (de onde o procurarem ser concordantes com uma linha) quer no postular a falsidade da opinião contrária (não pela crítica inteligente, mas de modo tão primário como "o que dizes não pode ser verdade. Logo, a verdade é esta").

Raríssimos são os que, perante um assunto, pensam: não sei o suficiente, não vou formar uma opinião, preciso de conhecer mais. É como o voto em branco; não contam. Não existem. E nestes tempos, não há tempo para hesitações! Tudo menos tibiezas - temos é que ser assertivos! Decisão rápida, a andar!

O "espectro de opinião" bipolarizado demora pouco a surgir; por vezes já está definido, por exemplo, quando um artigo de opinião tem a forma de uma argumentação em favor de uma tese qualquer - os pólos das reacções serão essa tese e a sua negação.

Em que é que isto é "útil", e a quem?

Não vale a pena ter rodeios: é útil ao poder instituído e a quem o manuseia.

Interessa manter a sociedade em estado de fractura constante, pois se a sociedade conseguisse formar consensos, poderia influenciar realmente as coisas. Por isso, estimula-se a opinião, sabendo, à partida, que a opinião da multidão é, quase sempre, bipolarizada.

O tipo de argumentação, clara e sucinta, que é necessário para veicular uma mensagem às multidões é, muitas vezes, incompatível, sequer, com a própria exposição dos problemas - quanto mais, com a sua discussão e crítica. Os problemas, por vezes, são complicados! Por exemplo: há aquecimento global? Toda a gente tem uma opinião: ou há, ou não há. Mas quem é que domina o universo técnico, esotérico, da climatologia - uma ciência cujo objecto, o clima, é, ele próprio, de uma complexidade extrema!

Na verdade, ao poder não importa a resposta ao problema. Procuram, acima de tudo e activamente, que existam as duas opiniões contrárias, procurando, ainda, que o peso de ambas se equilibre, que nunca nenhuma seja mais forte, para que nunca se gere um consenso. Um consenso obriga a um rumo definido e isso limita a liberdade de acção a quem manuseia o poder. Por isso, também, a mentira (uma mentira com número suficiente de apoiantes é tão legítima como uma verdade).

Talvez eu esteja enganado. Talvez, mas o cenário é possível, porque o facto é que as questões fracturantes estão aí e a polarização das opiniões também (sugiro uma leitura dos comentários aos artigos de opinião publicados online para verificar se a maioria das opiniões não está pré-definida, se não se limita à repetição ad eternum dos mesmos argumentos, se não é bipolarizada - isto para não mencionar o uso do insulto para atingir aqueles que já estão classificados como adversário e cuja opinião, portanto, é falsa e deve ser abatida, não discutida.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

4 Alternativas ao Crescimento Empobrecedor - Conferência "Do desenvolvimento alternativo às alternativas ao desenvolvimento" por Boaventura Sousa Santos/CIDAC, 16/1/2014

Uma das razões por que nos vemos como "reféns" da troika e das políticas "de austeridade" é que o pensamento criativo é muito mais difícil (e raro) do que o pensamento analítico. É mais fácil analisar, criticar, apontar o dedo às deficiências de um dado caminho do que imaginar outros caminhos. Muito mais difícil, ainda, é imaginar caminhos adequados à realidade: requer, simultaneamente, um conhecimento profundo e crítico desta (pensamento analítico) e a capacidade de recombinar os dados e projectar "realidades diferentes" que não sejam apenas quimeras.

De onde a confiança com que o governo acusa a oposição de ter um discurso destrutivo e de não apresentar alternativas e, em parte, a tíbia postura da parte maior da oposição, que foge à proposta e ao compromisso.

Ontem, na conferência"Do desenvolvimento alternativo às alternativas ao desenvolvimento", promovida pelo CIDAC, Boaventura Sousa Santos referiu QUATRO propostas alternativas ao sufoco do "crescimento empobrecedor", dito "austeridade". Não estou por dentro da vasta cultura literária e das actividades dos movimentos sociais no mundo, mas quero fazer eco das quatro propostas de Boaventura Sousa Santos na tentativa de erodir o mito de que a via seguida actualmente é a única via.

1) Proposta "indígena" do bem-viver: "vida em harmonia (i) consigo mesmo, (ii) com outras pessoas do mesmo grupo, (iii) com grupos diferentes, (iv) com Pachamama – a Mãe Terra (v) seus filhos e filhas de outras espécies e (vi) com os espíritos" (fonte: http://www.fepolitica.org.br/index.php/pedro-ribeiro/83-bem-viver-uma-proposta-para-a-vida-da-terra.)

Revolucionando/invertendo tanto as relações sociais humanas como a relação do Homem com a natureza, pretende INSERIR A NATUREZA NA SOCIEDADE (dando-lhe "personalidade jurídica e direitos). Longe de irrealismo, esta proposta parte da constatação de que o ser humano é um elo numa rede de interdependência e que a boa ordenação da sociedade humana implica a consideração da parte que cabe ao "não humano" - ou, melhor, à não distinção entre o humano e o não-humano.

Estes princípios foram adoptados nas constituições do Equador (2008) e da Bolívia (2009) - mesma fonte.

Aludindo à actual valorização da natureza, nas sociedades capitalistas, enquanto recurso económico (recursos naturais e não valores naturais) e mencionando o caso absurdo de uma indústria poder "comprar" o direito de poluir um rio se estiver disposta a pagar, a título de indemnização, o valor dos recursos (por exemplo, peixe) que deixarão de poder ser utilizados como consequência da poluição, Boaventura Sousa Santos sugere que, adoptando um princípio de valorização da vida não humana, tanto animal como vegetal, dos ecossistemas e dos processos ecológicos, a economia teria que se ajustar a formas de criação de riqueza que não se limitassem a recolher recursos detruindo os ecossistemas, pela impossibilidade de indemnizar a sociedade no valor dessa destruição.

2) Economia solidária: o papel das pequenas cooperativas e das relações comunitárias na satisfação das necessidades fundamentais, assumidamente sem o propósito de gerar lucro.

Numa perspectiva de economia plural, não se trata de lançar um anátema sobre as actividades lucrativas mas de, a par destas, permitir e fomentar o florescimento de uma rede de relações económicas solidárias que retirem da esfera do lucrativo a exclusividade da possibilidade de satisfazer as necessidades mais fundamentais.

3) Soberania alimentar: reduzir a vulnerabilidade alimentar das populações, enraizando a produção de alimentos nas comunidades, evitando que, dessa forma, a população não viva sujeita às flutuações de um mercado global de alimentos negociados como "commodities". Via campesina (http://viacampesina.org/), hortas urbanas, eco-aldeias, novamente as cooperativas.

4) "Zonas libertadas do mercado": trocas de bens e serviços sem dinheiro, seja de forma organizada (inúmeras associações de troca por "créditos" que têm surgido pelo mundo, centros de troca de coisas usadas, "couch-surfing", "woofing", trabalho voluntário) ou por alteração da forma de estar na vida, aceitando cada cidadão incorporar o princípio de dádiva do seu tempo e do seu saber a quem precise.

"Uma economia de mercado é saudável, uma sociedade de mercado é moralmente repugnante", disse Boaventura Sousa Santos, referindo-se à mercantilização daquilo que é fundamental ou estratégico: água,  saúde, educação, etc...

Ao referirmo-nos a "zonas libertadas" não invocamos a abolição do mercado, mas, novamente, sustentamos que haja outras formas que permitam um acesso ao fundamental para uma vida digna, não dependente da muito conjuntural capacidade de produzir riqueza.


É importante realizar e fazer eco destas e de outras propostas que existem e que são postas em prática, denunciando a narrativa mentirosa de que a via neo-liberal é a única via.

A manipulação do "fracturante"

A liderança PSD conseguiu, na AR, aprovar a realização de um referendo sobre a lei (já aprovada) que possibilita a co-adopção. Conseguiu-o sem o apoio do seu parceiro de coligação e contra a vontade e consciência de muitos dos seus próprios deputados (impondo a disciplina de voto).

Não vou discutir a matéria da lei ou do referendo, pois me parece que é absolutamente necessário que tomemos consciência dos contornos estuturais desta acção, que traduzem o modo actual de fazer política.

Leva-se à praça discussões emocionais e "fracturantes", procurando exaltar e dividir as opiniões. Este referendo, a "canonização" do Eusébio e a "convergência das pensões" são a mesma coisa: proporcionar à opinião pública assuntos de divisão e conflito que criem e mantenham, nos cidadãos, um espírito de aversão e desconfiança em relação aos outros. O mecanismo é simples: criar assuntos que puxem por uma resposta impulsiva, imediata, acrítica, emocional, errática; a par disto, promove-se uma sociedade de opinião fácil, onde todos se sentem habilitados a opinar sobre tudo sem um mínimo de esforço por analisar as questões.

Nem interessa "ganhar" o referendo: o melhor é mesmo que o resultado seja o mais próximo de 50% - 50%. São cortes na sociedade: conservadores contra liberais, jovens contra velhos, ricos contra pobres, privado contra público, pais contra professores, Lisboa contra Porto, etc... Até as manifestações e contestações ao Poder e às instituições: interessa que elas aconteçam e que tenham a maior visibilidade, pois sabem que as reacções que vão provocar são tendencialmente emocionais, por vezes tribais ou facciosas, mas raramente racionais. Aumentam a sensação de clivagem profunda na sociedade e de isolamento dos indivíduos, de incapacidade de acção.

Tudo facadas no bolo para fragmentar e manter fragmentada a sociedade, incapaz de se unir e de agir em bloco contra quem a manipula.

Todas estas "questões fracturantes" têm uma mesma nota característica: apelam a uma resposta emocional e não racional, impulsiva e não analítica.

A força da democracia depende da força da sociedade democrática - se a sociedade estiver embrutecida, torna-se manipulável pela simples incapacidade de reagir em conjunto.

As "questões fracturantes" perseguem e alcançam, ainda,  outro objectivo: semear e alimentar o distanciamento das pessoas em relação às instituições e ao poder, através do desânimo, do niilismo como saída fácil. Este distanciamento não penaliza aqueles que jogam este jogo de manipulação, antes pelo contrário: permite-lhes fazer o que lhes importa em paz e sossego.

Há quem defenda que este é o "preço da Democracia", o que é outra forma de desviar o olhar da questão central: a Democracia não é as suas regras, mas a sociedade que lhes dá corpo. Numa sociedade fraca, como a portuguesa, até as regras que existem são impunemente pisadas a bel-prazer por quem detém o poder.

Quem detém o poder está, neste momento, empenhado em enfraquecer a sociedade civil - e, portanto, a democracia. Materializando o chavão: "democracia de fachada".

Quem tiver os olhos abertos recusar-se-á a discutir "questões fracturantes" e empenhar-se-á, pelo contrário, na denúncia da manipulação que lhes está por trás.